segunda-feira, março 03, 2008

António Sousa sobre o CD Natália Descalça

Notas à solta
António Melo Sousa
Dez.2006

O encontro da poesia de Natália Correia com a música de Teresa Gentil acontece de forma tão natural e sincrónica neste disco que eu arriscaria afirmar que as palavras aqui ditas e cantadas estariam, desde a sua génese, à espera de renascerem assim um dia, talvez mais “descalças” e inteiras ainda, porque reinventadas no ventre dos sons que agora as envolvem e abençoam.
“Natália Descalça” é antes de mais um notável acto de coragem de mulheres que abraçaram com uma enorme paixão a herança literária e vivencial de um ser de excepção. Uma espécie de reunião tribal e espiritual com uma irmã maior. “E como é que nos cruzámos com Natália Correia? (…) Chamou-nos e nós fomos”. Assim se referem “as descalças” ao apelo que sentiram na hora de embarcar na aventura. O disco nasce assim como um gesto de grande cumplicidade que, em termos de metodologia e desenvolvimento criativo, se traduz numa incondicional entrega, rendição, aos desígnios da palavra/vida da poetisa das ilhas e do mundo. E quem melhor que as autoras para nos esclarecerem sobre o processo de fruição e criação: “depois foi a música que nasceu, doeu, corroeu e finalmente pairou. (…) E foi a dizer em voz alta as suas palavras, e na paz, que sentimos que era ela quem nos tomava o pulso e comandava a barca.”
É óbvio que dizer/cantar/tocar Natália não é desafio de pouca monta. Ao assumirem tamanho risco “as descalças” chamaram a si uma enorme responsabilidade. Porque neste caso a poesia já é portadora da sua própria musicalidade. Havia que respeitar, à partida, o fluxo rítmico, melódico e harmónico da escrita, do mais puro lirismo às inevitáveis dissonâncias. Teresa Gentil percebeu isso muito bem na forma como aceitou que a poesia de Natália ditasse o rumo do trabalho de composição e não fosse apenas pretexto para mais um punhado de cantigas e fundos musicais. Senhora de uma voz de uma grande amplitude e riqueza tímbrica, que se afirma fluente e livre em momentos particularmente inspirados de improvisação, e demonstrando uma erudição e talento dignos de nota em termos de composição e capacidade para explorar criativamente o piano, a guitarra e uma considerável panóplia de instrumentos de percussão, Teresa Gentil é, no mínimo, surpreendente. Alquimista de ambiências sonoras onde a sofisticação e a originalidade são imagens de marca, a compositora navega com a mesma facilidade em terrenos clássicos e na invenção e exploração de sons com um toque de contemporaneidade prenhe de futuro.
Esta é uma viagem musical feita de muitos e variados andamentos, que ao mesmo tempo descodifica e exalta a força da poesia de Natália Correia nos sons e silêncios dum minimalismo encantatório, nas referências ao tango e à valsa, e até numa passagem breve por um bailinho do nosso cancioneiro tradicional. Uma particular chamada de atenção para a riqueza da concepção e execução rítmica, com Miguel Cardoso no baixo eléctrico muito bem sintonizado com Teresa Gentil nas percussões, perfeitamente entrosados com as nuances e cadências implícitas no discurso de Natália.
E, last but not least, especial destaque para a presença de Maria Simões que, ora sussurrante e introspectiva, ora insinuante, irónica, mordaz e vulcânica, vive as palavras que diz com uma subtileza, intuição, inteligência e garra pouco comuns. Uma verdadeira força da natureza na maneira como encarna o verbo, Maria Simões interioriza a poesia de Natália Correia com um enorme respeito pela inesgotável riqueza de sinais e significados da mesma e, ao transmiti-la, abana consciências e acorda os nossos sentidos mais adormecidos. Emociona-se e emociona-nos.
Na origem do acto artístico, enquanto antevisão de um mundo melhor e subversão de fórmulas previsíveis e rotineiras que reflectem a pobreza do quotidiano de seres cada vez mais saturados/desencontrados, náufragos à deriva no turbulento oceano da sociedade da informação e do espectáculo, só a aceitação cabal do sonho rumo a um tempo e lugar de maior justiça e paz e a celebração individual e colectiva do desejo poderão prefigurar uma verdadeira comunhão de valores universais e novas utopias estéticas. “Natália Descalça” é uma preciosa contribuição nesse sentido, na medida em que revela uma atitude sentida e palpável, simultânea e paradoxalmente espiritual e radicalmente humana, de compromisso cultural sério e interventivo.
Num acto de infinito esclarecimento e extraordinária coragem Natália um dia bradou ao mundo que “a poesia é para comer”. Neste caso, as iguarias para o banquete foram preparadas a preceito e, sobretudo, com muito amor, esse tempero primordial tantas vezes esquecido. Tudo isso e mais num álbum, deliciosamente ilustrado pelo Luís Roque, onde a arte da música se rende de forma exemplar aos mistérios e segredos da palavra. Digno do inesgotável legado da nossa Natália. Obrigado “descalças”. Para sempre Natália!

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